Letra Morta: OMC Comanda Propriedade Intelectual
Ano 1 – Edição 3 – Periodicidade semanal
Começa a vir à tona, hoje, os principais pontos da reforma do direito autoral planejada pelo governo brasileiro. A Folha teve acesso às diretrizes do anteprojeto de lei preparado pelo Ministério da Cultura(MinC) em parceria com academicos e juristas. Antes mesmo de tornar-se público, o texto já causa divergências.
A iniciativa inclui-se num movimento mundial de revisão de leis que, simplesmente, não servem mais. Baseados na Convenção de Berna, de 1886, as leis de direito autoral regem um mundo que deixou de existir. “Elas têm origem no século 19. Uma coisa é falar de partitura, outra é falar de sampler, que é mais do que uma cópia, é a recriação de uma obra”, exemplifica o professor Marcos Wachowicz, da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), organizadora do 3º Congresso de Direito do Autor e Interesse Público, que acontece hoje e amanhã, na Fecomercio, em São Paulo.
No encontro, especialistas vão debruçar-se sobre o texto alinhavado pelo MinC a apartir de um diagnostico do setor cultural. Com isso, será dada a largada oficial para a revisão da lei em vigor, aprovada em 1998, como atualização de uma lei criada em 1973. O texto atual trata como ilegais atitudes coriqueiras, como a cópia de um CD para um pen drive. “Temos toda uma população na ilegalidade”, resume Wachowicz.
“Mudou a necessidade do consumidor e também a do autor”, diz Alfredo Manevy, secretário-executivo do MinC, para quem os criadores, não raro, são submetidos a “contratos leoninos”. “Há um desequilíbrio de forças entre autores e investidores”, diz, referindo-se a gravadoras, editoras etc. “Queremos fortalecer e garantir direitos hoje diluídos.”
Mas não é necessariamente assim que os autores pensam. “A iniciativa do MinC está divorciada das discussões mundiais”, diz José Carlos Aguiar, presidente da Associação Brasileira de Direito de Autor (ABRADA).
“As entidades de autores não foram consultadas e a tônica é a da fragilização do direito autoral”, aposta. Também contra o projeto posiciona-se, de antemão, a Associação Brasileira de Música e Artes (Abramus). “Parece que virá como um pacote de cima para baixo”, diz Juca Novaes, a despeito da informação do MinC de que se trata de uma primeira proposta, a ser submetida a um longo processo de discussão. “Está clara a intenção de estatização do direito autoral”, completa.
No texto há, de fato, menção ao Instituto Brasileiro de Direito Autoral, que o MinC não esclarece muito bem o que seria. José Luiz Herência, secretáio de politicas culturais, diz apenas ser importante maior presença do poder público no setor. Não se sabe, porém, o quanto o instituto teria o poder de interferir no Escritório Central de Arrecadação e Distribuição (Ecad), encarregado de arrecadar o pagamento de direitos autorais. O Ecad distribuiu, em 2088, cerca de R$ 207 milhões para mais de 73 mil músicos. Herência limita-se a dizer que “o Ecad precisa aprimorar seus mecanismos de transparência”.
O que está em jogo é também a relação entre interesses diversos. “O direito de autor foi criado para regular interesses privados. ” Com a internet, o papel do interesse público se ampliou”, diz o professor Manoel Pereira dos Santos, da FGV. “Temos mais gente produzindo, disponibilizando e tendo acesso. Isso muda o equilíbrio de poderes e, por isso, no mundo, estão mudando as leis.”
O professor José de Oliveira Ascensão, da Universidade de Lisboa, fez parte, em 1967, da criação da Organização Mundial da Propriedade Intelectual (Ompi), sediada em Genebra, na Suíça. Cabe ao português a constatação de que, decorridas quatro décadas da criação do órgão, os direitos de autor escaparam ao controle de artistas, consumidores e até mesmo dos governos locais.
”A entidade que regula o comércio mundial passou a ser a entidade mais influente nas definições sobre direito autoral”, diz Ascensão. “Os direitos autorais estão transformados em mercadoria.” Ele refere-se ao papel que a Organização Mundial do Comercio (OMC) passou a desempenhar nos assuntos de propriedade intelectual desde que foi criada, em 1994. Datam dessa época, inclusive, várias das revisões legais ao redor do mundo. Foi o que aconteceu no Brasil.
”A lei de 1998 é mais restritiva que a de 1973. Ela eleva ao máximo as proteções”, diz professor Marcos Wachowicz, da UFSC. “ Há interesses econômicos que devem ser mantidos, é claro. Mas também há interesses públicos que devem ser preservados. Hoje, há um desequilíbrio.”
Wachowicz cita a proibição das cópias de trechos de livros numa universidade como exemplo desse excesso de proteção. A lei também impede, por exemplo, que se faça a cópia de um livro que, mesmo atacado por fungos, esteja ameaçado numa biblioteca.
Nos Estados Unidos, por exemplo, os casos excepcionais estão todos previstos em lei. Lá, inclusive, a venda de DVDs piratas não é considerada crime, e sim um ilícito civil. “Nossa lei protege a indústria e não a diversidade cultural.”
É nesse ponto que lei de direito autoral e regulação da internet se encontram. Alguns países têm tentado tratar dos dois assuntos simultaneamente; outros têm regulado apenas alguns pontos, isoladamente, resolvendo problemas urgentes. Em todos os lugares, o principal argumento a favor das regras rígidas é que, sem proteção, não há investimento.
”Não podemos acreditar que uma legislação que transforme a internet num ambiente hostil seja razoável. O Brasil não comporta uma lei como a francesa, que criminaliza o usuário. Com essa frase, o secretário-executivo do Ministério da Cultura (MinC), Alfredo Manevy, indica o caminho que o governo brasileiro pretende trilhar no novo ambiente digital.
Vai na mesma direção a fala de Guilherme Almeida, da Secretaria de Assuntos Legislativos do Ministério da Justiça, que, há uma semana, deu início à consulta pública para a criação de um novo marco legal da internet. “Vamos definir responsabilidades, mas sem esquecer o direito do usuário.”
Ao que tudo indica, a idéia do governo é trabalhar de maneira conjunta as mudanças na lei do direito autoral e a regulamentação da internet. “O textos devem estar no Congresso em 2010”, prevê Almeida. “Percebemos, inclusive, movimentos para que a lei Azeredo seja arquivada.” A Lei Azeredo, em tramitação, procura coibir os crimes praticados na internet, mas, rígida, acaba por penalizar também o usuário comum.
A definição de limites para a internet tem originando violentos cabos-de-guerra no mundo todo. A lei francesa, que punia quem fizesse download ilegal, ganhou fama; no fim, foi rejeitada pelo Conselho Constitucional. O governo canadense também apresentou um projeto que, de tão atacado pela sociedade, foi engavetado.
”É preciso saber o quanto a proteção não restringe a difusão do conhecimento, que é a base da internet”, diz o professor Marcos Wachowicz, da UFSC. Do outro lado, Juca Novaes, da Abramus, vê como prejudiciais aos autores os discurso excessivamente liberalizante sobre a internet.
”Não dá para imaginar um mundo na qual os autores não recebam por sua criação. A tendência é que se consuma na rede, mas alguém tem que pagar por isso”, diz. “Por trás dos downloads, estão provedores ganhando dinheiro. Há autores que, se não receberem direitos autorais, não têm como pagar aluguel.”
Fonte: Folha de S. Paulo (Ana Paula Souza)
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