jun 22, 2010
rogeriosandim

Algumas considerações sobre a crise do direito de autor

Ano 1 – Edição 20 – Periodicidade semanal

Semana passada tive o prazer de participar em Fortaleza do Seminário Internacional sobre Direito Autoral promovido pelo Ministério da Cultura, pela Organização Mundial da Propriedade Intelectual (OMPI) e pelo Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD). O tópico de discussão da mesa número cinco, que girou sobre a questão da cópia privada, deu ensejo a uma acalorada discussão que me incentivou a escrever este pequeno artigo.

O direito de autor garante proteção a um bem imaterial. Um bem imaterial, por sua vez, é um bem que tem por característica não ser passível de apropriação. Isto quer dizer que várias pessoas podem consumir ao mesmo tempo o bem imaterial.

Para compreender bem a noção de bem imaterial, valho-me aqui da biruta como exemplo, aquele cone de tecido usado para mostrar a direção dos ventos e presente em todos os aeroportos. Seja o piloto do avião, os passageiros, os visitantes ou os trabalhadores do aeroporto, basta olhar para a biruta para saber qual é a direção do vento. O piloto precisa desta informação como orientação para a decolagem e aterrissagem do avião, o visitante que pretenda soltar pipa no parque próximo ao aeroporto também fará uso desta informação, bem como uma mãe poderá valer-se dela para decidir se veste, ou não, o casaco em seu filho pequeno. Neste sentido, diz-se que o bem imaterial — informação que se tira da posição da biruta — é um bem público, ou seja, diferente de um bem material privado, como por exemplo o paletó do piloto, que só serve para aquecer as suas costas. Por fim, cabe ressaltar, quando aqui se fala em bem público — ou privado — não se está empregando a expressão em sentido jurídico, mas sim em sentido econômico.

Pensemos agora em um cordelista do nordeste do Brasil a recitar em praça pública seus próprios versos acompanhados pelo som da guitarra. Todos aqueles que se reúnem ao redor do cordelista aproveitam ao mesmo tempo os versos por ele recitados. Estes versos, bem como a informação que se retira da biruta são, em seu estado natural, bens imateriais e públicos.

É certo que entre as informações retiradas da posição da biruta e os versos do cordelista há uma diferença básica importante, pois enquanto as informações sobre a direção dos ventos são informações às quais se chega por empirismo, ou seja, por meio de observação, os versos do cordelista são uma criação intelectual dele. Mas apesar desta diferença, que será decisiva para o reconhecimento de proteção autoral apenas aos versos do cordelista, e não às informações fornecidas pela posição da biruta, ambos os bens são em sua natureza bens imateriais e públicos.

O fato das pessoas pararem ao redor do cordelista para ouvirem seus versos demonstra que há procura por eles. E onde há procura abre-se a possibilidade de fazer valer um interesse econômico.

Ao observar os homens e mulheres encantados com seus versos, o cordelista percebe que há um interesse de aproveitamento estético de seu trabalho intelectual e, assim sendo, chega à conclusão que poderia cobrar um preço para colocar seus versos à disposição do público. Mas como cobrar um preço pelos versos se eles são imateriais e naturalmente públicos?

Para resolver tal questão criou-se a proteção autoral, através da qual garante-se ao cordelista, bem como a todos os outros autores, um direito de exploração econômica exclusivo de suas obras.

Isto significa que a legislação de direito de autor transforma o bem intelectual de natureza pública em um bem exclusivo. Através desta construção e da criação de uma situação artificial de exclusividade superam-se as dificuldades oriundas da imaterialidade dos versos do cordelista.

Além disso, o direito autoral ainda tem uma preocupação com o aspecto ideal da criação do autor. Neste sentido é garantido ao cordelista, o sujeito que quebrou a cabeça e dependeu de inspiração para construir seus versos, faculdades de natureza pessoal em relação a eles. Estas faculdades pessoais são chamadas de direito moral de autor.

Para garantir as faculdades pessoais do autor em relação à sua obra não teria sido necessário criar uma situação artificial que permite ao autor tirar aproveitamento econômico da obra de forma exclusiva. Este fato é importante. Compreendê-lo é fundamental para entender que, ao criar a situação artificial de exclusividade de um bem naturalmente público, o legislador assim o faz para garantir ao autor o aproveitamento econômico da obra. É importante frisar que a exclusividade de exploração da obra é de natureza patrimonial, ou seja, é voltada para fins econômicos.

Seguindo com o exemplo do cordelista então imaginamos que ele, diante do sucesso de seus versos, gostaria de divulgá-los atingindo um espaço físico maior do que aquele da praça de sua cidade. Uma vez que ele não tem estrutura própria para fazer tal divulgação ele irá contratar, mediante remuneração, uma edição de seus versos por terceiros. Neste momento surge um importante elemento intermediário na relação entre autor e usuário, qual seja a chamada indústria de direito autoral.

Retomando a noção de que quando a lei cria a situação artificial de exclusividade assim o faz para garantir ao autor tirar proveito econômico da obra, compreende-se que o usuário, então, deverá pagar um preço pelo uso da obra. E, seguindo esta lógica, afirma-se que se o usuário pretende usar a obra de forma a retirar dela vantagens econômicas, o autor, ou o titular das faculdades patrimoniais que recaem sobre ela, terá ainda um direito a uma remuneração posterior por este uso econômico da obra.

No raciocínio acima desponta o elemento decisivo para estabelecer os limites do uso da obra pelo usuário, qual seja o elemento econômico. Aquele que adquire um CD paga pelo direito de ouvir a música quantas vezes quiser e, desde de que de forma privada, de ouvi-la onde quiser. O mesmo com o livro. Aquele que adquire um livro tem o direito de se deliciar com o seu conteúdo quantas vezes quiser e onde quiser. Ele também tem o direito de ler passagens interessantes para seus amigos ou de emprestá-lo para a sua namorada. Isto por que o uso privado da obra é legitimo. O usuário pagou por ele e fruir da obra é agora um direito seu. O direito de autor só continuará podendo ser invocado se e no momento em que o usuário que pagou pelo uso privado da obra vier a consumi-la visando vantagens econômicas adicionais. O divisor de águas aqui é o uso privado com fins de aferição de vantagem econômica. Neste momento chega-se ao ponto controvertido que foi tema da mesa de discussão daquele seminário que acima me referi.

A lei brasileira que regula os direitos de autor dispõe sobre a possibilidade de cópias privadas de pequenos trechos das obras. Uma interpretação restritiva deste dispositivo cria situações absurdas. Existem pessoas, por exemplo, que têm o hábito de rabiscar os livros. Quando os lêem interagem com aqueles, sublinhado as passagens mais importantes, escrevendo comentários ao lado dos parágrafos. Para não estragar os livros, que poderão ser relidos depois de algum tempo, costumam tirar uma cópia deles e trabalhar riscando a cópia, e não o original. Tal cópia é para uso exclusivamente privado, em nada afeta o direito do titular das faculdades patrimoniais sobre a obra. Limitar este tipo de cópia a pequenos trechos é limitar o direito do usuário de fazer uso da obra.

Um outro exemplo surrealista é o controle de cópias de música. Tome-se como exemplo um casal com dois filhos. Cada um dos filhos tem um aparelho celular, um aparelho que toca CDs em seus quartos e um aparelho portátil que toca música em formato MP3. Os pais, por sua vez, têm um aparelho que toca CDs e um computador. Ambos também têm celulares e aparelhos que tocam música em formato MP3. Além disso há o aparelho de tocar CDs no carro da família. Esta família é a família padrão da indústria moderna: quatro pessoas e catorze suportes capazes de reproduzir música. Não soa surrealista a limitação da cópia privada a pequenos trechos da música?

Entre a realidade e a interpretação restritiva do dispositivo da lei brasileira forma-se um abismo insuperável.

Cópia privada não é pirataria. O uso privado da obra, o que também inclui a reprodução da obra nos suportes modernos privados do usuário e sua família, nunca foi proibido ou controlado pelo direito de autor. Pelo contrário, supor tal controle é ir além dos fins da proteção patrimonial autoral, que é garantida em função da exploração econômica da obra. Querer impor limites no consumo privado da obra é interferir nos direitos do consumidor.

A ordem jurídica brasileira apresenta dispositivos que mostram uma grande preocupação com a proteção do consumidor. Neste sentido não se há de supor que o legislador, ao limitar a cópia privada a pequenos trechos da obra, se referia ao uso privado legítimo e inerente à obra, como o direito de copiar integralmente o livro para estudá-lo marcando suas passagens, ou o direito de copiar uma música nos diferentes suportes particulares do consumidor. A preocupação do legislador aqui parece indicar o uso da obra feito em uma zona cinzenta, onde tal uso não é procedido com fins de auferir lucros mas que, por outro lado, vai além daquela esfera íntima do usuário da obra. Nesta zona cinzenta estaria, por exemplo, a cópia de uma música em diversos CDs para ser distribuída pelo adolescente para todos os seus colegas de classe. Ou ainda a cópia dos livros nas faculdades.

É importante esclarecer estes limites. Tolher o uso privado do usuário de maneira descabida é violação dos direitos de consumidor. Não estabelecer os limites deste uso privado significaria, por outro lado, violação de direito autoral.
A solução de tal impasse não exige modificar a lei, posto que o problema, na verdade, não está na má técnica do dispositivo legal, mas antes na desconsideração do conflito entre o direito de autor e direito do consumidor.
Hoje a lei fala em permissão da cópia privada de pequenos trechos, amanhã poderá falar que a cópia privada é livre. A questão, porém, seja em uma ou em outra redação, depende da definição da extensão do adjetivo “privado”. Seja em um sentido, ou em outro, enquanto a interpretação da letra da lei autoral desconsiderar a motivação econômica da proteção das faculdades patrimoniais do autor, enquanto ela não for procedida levando em consideração o ordenamento jurídico como um todo, o que implica também na consideração da proteção de outros interesses conflitantes, e enquanto ela não for procedida pautada em um programa político definido, ela gerará inevitavelmente desequilíbrios.

A questão da cópia privada é apenas um dos pontos controvertidos que reflete aquilo que se chama de crise do direito autoral, e solucionar a tal crise pede, de plano, a adoção de visão realista para fins de análise do problema.

Pessoalmente alimento grande simpatia por construções como a do Copyleft ou do Creative Commons. O problema é que, deixando a simpatia de lado e adotando uma posição realista, tais modelos não parecem ser praticáveis em grande escala. Por certo, a indústria de direitos de autor, a intermediária na cadeia de relações entre autor e usuário, insiste em pecar repetitivamente, merecendo assim ser criticada. Mas, apesar disto, ela é importante e deve ser preservada, posto que gera empregos e desenvolvimento.

A verdade é que, queiramos ou não, vivemos em uma economia de mercado. A organização é capitalista e o modelo de direito autoral é ajustado a esta realidade. Tendo em vista esta situação inequívoca, querer superar a intermediação da indústria de direitos autorais de forma radical lembra a situação que se cria ao retirar uma das frutas da base de uma pirâmide de laranjas exposta em um supermercado.

A solução para a crise do direito de autor não parece assim estar nem no extremo de dar salvo conduto à indústria de direitos autorais, esperando que as forças de mercado regulem livremente sua atuação, e nem no outro extremo de criação de modelos que a superem como intermediárias no processo de exploração econômica dos direitos autorais. Pelo contrário, o caminho parece estar na aceitação do potencial econômico do direito autoral adaptado à realidade e às necessidades da sociedade brasileira.

Para explicar o caminho que aqui se propõe faz-se mais uma vez uso de uma ilustração. O uso do exemplo do jogo de futebol não se deve ao clichê da ligação do Brasil com o futebol, mas antes por que a experiência como treinadora de um time de futebol de crianças fornece os insumos necessários para construir tal ilustração.

Na Alemanha as crianças de até doze anos jogam os jogos de futebol das tabelas regionais em campo pequeno, sendo o time formado por sete jogadores. Nestes jogos não se aplicam nem cartão amarelo, nem vermelho. A regra do impedimento também não é aplicada. Enquanto na classe de jogadores até seis anos o treinador já se dá por satisfeito aos ver seus meninos chutando a bola para direção do gol adversário, na classe de jogadores de onze a doze anos o treinador, ao contrário, já pode aplicar formações técnicas de ataque ou defesa. Mas mesmo nesta categoria seria ainda impensável desenvolver técnicas de jogo complexas, baseadas, por exemplo, na defesa com base em criação de situações de impedimento etc. A partir dos doze anos os meninos passam a jogar em campo grande e o time passa a ser constituído por onze jogadores. Quanto mais velhos os jogadores, maior a semelhança com o jogo de futebol dos adultos. Além disso, a diferença principal entre a categoria de idade de campo pequeno e a categoria de idade que joga em campo grande é o fato de que o técnico no campo pequeno persegue, em primeira linha, o objetivo de desenvolver a coordenação motora e a competência social das crianças, permitindo assim que aprendam a jogar como um time. O técnico de campo grande, ao contrário, vai gradativamente exigindo das crianças e dos adolescentes cada vez mais eficiência no jogo.

O jogo dos meninos de seis anos e dos adultos tem em comum que ambos jogam futebol. O espectador na beira do campo reconhece em ambos os casos o futebol, pois sejam as crianças pequenas ou os homens adultos, ambos se movimentam pautados em regras básicas que caracterizam o jogo de futebol. As características finas dos jogos de um ou de outro time são, ao contrário, diferentes, estando adaptadas ao desenvolvimento natural dos jogadores de seis anos e dos jogadores adultos. Exigir dos meninos de seis anos que joguem um futebol do nível técnico-organizatório que se vê no jogo dos adultos é impraticável.
A mesma situação de adaptação das estruturas que acima chamei de finas deve ocorrer não só em relação ao direito autoral, mas a todo o arcabouço que trata da propriedade imaterial. A organização do jogo econômico mundial da qual o Brasil faz parte como país jogador exige que ele reconheça suas regras gerais. O nível de complexidade das estruturas finas das regras do jogo deve, como no jogo de futebol, estar adequado à realidade econômico-social das sociedades jogadoras e ao grau de desenvolvimento delas.

Exigir que o jogo seja jogado com o objetivo primordial de alcançar eficiência econômica só é praticável em um mercado que conte com estruturas desenvolvidas de forma suficiente para arcar com o preço que vem ligado à eficiência. Dizendo de outra forma, querer aplicar graus sofisticados de regras que não correspondem ao desenvolvimento dos jogadores faz do jogo um fenômeno impraticável.

No que diz respeito ao direito autoral este princípio de adequação das estruturas finas à estrutura social envolve diretamente o autor, a indústria de direito autorais, os usuários e o governo em seu papel de garantir educação e acesso à informação. Qualquer desequilíbrio nas relações de forças entre estes mencionados atores da cadeia de direito autoral gera processos autofágicos.
Neste sentido, por exemplo, a indústria de direito autoral precisa se conscientizar que, ao exagerar na perseguição da vantagem econômica, ela não só rouba de si mesma legitimidade de perseguir o lucro, mas também desencadeia, ela mesma, o fenômeno chamado de pirataria.

Pirataria é efeito colateral da doença da falta de equilíbrio econômico. Pirataria é efeito colateral da marginalização gerada pela privatização excessiva. Pirataria, nas dimensões que alcança no Brasil, é a prova de que o nível de proteção que vem sendo exigido aos bens imateriais não corresponde ao grau de desenvolvimento econômico e social nacional, enfim à realidade brasileira. Insistir neste padrão alto e irreal de proteção é dar murro em ponta de faca. A indústria de direitos autorais precisa despertar para esta realidade e procurar adotar novos modelos de gestão de seus interesses. Insistir em medidas que violam os direitos dos consumidores, insistir em aplicar a todo o custo a ineficaz lei das baionetas na perseguição da pirataria é nadar contra a corrente. A indústria de direitos autorais vem, desta forma, cavando a sua própria cova. E o pior é que morrendo ela nos fará falta, grande falta.

Por outro lado, é imprescindível que o Estado brasileiro defina de forma inequívoca programas políticos que possam servir de pauta às decisões de um judiciário que pede por mais preparo no conhecimento da matéria. O problema da cópia privada nos estabelecimentos de ensino, por exemplo, não precisa necessariamente — e nem o será — ser resolvido com uma modificação no dispositivo da lei autoral. Pelo contrário, a solução parece exigir do governo brasileiro que estabeleça política clara de educação, soprando assim vida ao dispositivo constitucional que garante a educação, estabelecendo deste modo parâmetros para que o judiciário possa traçar os limites da faculdade de exploração econômica exclusiva do autor frente ao direito fundamental de cada cidadão brasileiro de ter acesso à educação.

Por fim, é necessário que todos os envolvidos no problema deixem de mistificar conceitos como “flexibilização de direitos autorais”, “controle estatal” etc. No barco do direito autoral encontram-se sentados o autor, a indústria de direitos autorais, o usuário e o governo brasileiro como realizador de políticas públicas. Se se pretende superar de fato a crise do direito autoral, o momento é de ação conjunta, de procura conjunta de soluções pautadas em um escopo regido pelo princípio de ética econômica.

Fonte: Karin Grau-Kuntz doutora e mestre pela Ludwig-Maximillian-Universität em Munique, é pesquisadora na Europa do Instituto Brasileiro de Propriedade Intelectual – IBPI e consultora da Cruzeiro/Newmarc Propriedade Intelectual

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